Para homenagear os mortos, sensível texto do amigo Pawwlow e entrevista séria do Historiador Carlos Bacellar ao apresentador Ronnie Von.
Dia dos Mortos no Bonfim – Pawwlow
Embora não tenha parentes sepultados no Bonfim ( familiares enterrados em cemitérios distantes de onde moro, sob placas indicativas, não ocupando túmulos inspiradores), lá homenageio os mortos em seu dia. Cemitério antigo, localizado em bairro berço de lendas urbanas de Belo Horizonte, ele próprio lenda, me parece o santuário indiscutível do feriado de Finados. O feriado me fornecendo pretexto para visitar, uma vez mais, o cemitério de predileção. Sinto-me como o Jânio Quadros prefeito de São Paulo nos anos ‘80 exigindo em bilhetes “um dia dos mortos impecável”, enquanto notava, por exemplo, o cemitério de Vila Alpina com “rosas jogadas no chão, em desalinho deplorável” (cito de memória, mas sob impressão favorável ao político atento ao abandono dos cemitérios que recebiam familiares de mortos com indisfarçável desleixo, como se estes estivessem mortos também, ou cegos quanto ao tratamento dispensado aos seus).Uma vez mais, subi ao Bonfim, revi suas moradoras em shorts vigiando as ruas e quem, como eu, parecia-lhes intruso, ou um boêmio retardatário, ou um comum curioso praticando turismo urbano no bairro que já teve cassinos e, dizem, visita de Orson Welles. Encruzilhadas com despachos saúdam visitantes. Nenhum travesti nas ruas, nenhuma prostituta identificável, o bairro parecia me receber como a um conviva tardio, que perdera os seus dias de esbórnia e fúria, chegando anos depois do fechamento do último de seus prostíbulos, colhendo quando muito algum resquício de murmúrio narrativo do que não pude, ou não quis, assistir enquanto acontecia, recorrendo aos exageros de quem pegou restos de décadas menos domesticadas no bairro mítico da zona boêmia. O Bonfim, bairro boêmio, próximo ao centro da cidade, vizinho da Av .Pedro II, suporta estoico seu estigma de morada de prostitutas e travestis, sua qualificação de “decadente”, a vergonha da BH petista, que se refere ao bairro de oficinas de carros e fabriquetas, e demais ramos de comércio, como “deteriorado”. João Antônio escreveu seu “A Lapa acordada para morrer” sobre o desmantelamento do velho bairro carioca, pois o Bonfim é assassinado dormindo mesmo, por autoridades que tramam sua “revitalização”, sua descaracterização higienizadora, sua eliminação como membro indesejável da família mineira. O Bonfim escandaliza os vendedores da “BH popular”, os marqueteiros da “capital de vanguarda”. O Bonfim queima o filme, sintetizando. Jazigos de políticos (Olegário Maciel, Raul Soares, Afonso Pena, Magalhães Pinto, entre outros), verdadeiros monumentos, dividem as alamedas com jazigos de famílias, alguns destes contendo fotos de décadas idas, rostos em nítida contemplação de dias menos velozes e corruptos. Não são poucas as imagens ali que parecem retiradas das capas de livros de Dalton Trevisan, de algum filme mudo, ou revista dos tempos da Republica Velha. Os escritos em latim dos jazigos de vultos da vida pública parecem títulos de capítulos onde os lembretes de familiares em jazigos de gente da vida particular formam o texto (” Sua morte nos mergulhou em nuvem negra de recordações e lamentos”, “Em vida a ternura em pessoa, em morte um anjo”, ”Sempre em nossa memória, para sempre presente em nossos dias”) de um mesmo livro. Alguns retratados bem jovens, indicando breve seu calvário aqui entre os vivos. O sorriso de alguns vultos explica o pesar de quem teve de continuar o resto da navegação sem a companhia de remador que com seu entusiasmo transformava mar furioso em percurso de provas de vela. Clichê lembrar que as lágrimas cabem aos sobreviventes? Familiares tocando o peito com a mão ao se recusar à aproximação de certos túmulos aparentam não tomar conhecimento dos ditames do bom gosto e da concisão, e qualquer tentativa de descrevê-los seria temerária, pois a sub-literatura seria infalível, exceto se feita por algum escritor que justificasse as árvores derrubadas (como nota Mario Sergio Conti, poucos o justificam). Todos, principalmente velhos com dificuldade em localizar lápides e quadras, têm suas velas a zelar, seu ritual de remover capins e ofertar flores e lágrimas aos que as cobram em sonhos -“Como tem cuidado de meu túmulo lá no Bonfim?” O feriado de Dia de Finados elimina qualquer desculpa no descuido das obrigações, os vivos e os mortos na observação estrita do comparecimento ao encontro que pesa como condenação aos vivos e é agradável visita aos mortos. Guardiões dos túmulos são os gatos alimentados com baldes de ração e bacias de água por funcionários que parecem afeiçoados ao local (um dos funcionários me pareceu estar com lábios pintados com batom, fiel ao espírito do Bonfim) . Parecem, os gatos, ferozes e dispostos a hipnotizar os que, como eu, visitam seus templos sem a devida justificativa. Uma caixa com filhotes de gatos ocupava o antigo necrotério (palco de uma das lendas do bairro, do cemitério – moça que sofrera ataque de catalepsia, despertara em pleno necrotério, morrendo de pavor agarrada às grades da janela), com água e ração postas para a ninhada.Um grupo de adolescentes “góticos “ e eu os observávamos, os ditos góticos jurando sentir que as mãos postas sob a porta pareciam atraídas por “alguma força”. Meus dedos experimentaram apenas frio e sujeira e meninos (provavelmente oriundos da Pedreira Prado Lopes) zombavam dos ditos góticos : “ Ei , vocês são espíritos”. Paulo Mayr, no seu blog “Boca no Trombone”, antecipou em dias sua celebração de Finados em edição especial com piadas de velórios e possíveis epitáfios, lembrando que morte e cemitério são inevitáveis e o único recurso frente ao encontro que teremos um dia com o coveiro é rir, mas não consigo, apesar de racionalmente concordar com o Mayr. O Finados a muitos serve de data para reflexões de cunho metafísico, ou filosófico, sobre a inutilidade das lamentações sobre a morte. Para mim, é data para me vestir (reiterar esta minha preferência, na verdade) de camisa preta e cismar sobre como seriam as vidas dos personagens dos retratos nas lápides, e chorar como se os tivesse conhecido. Acompanhados por estes mortos pelo Bonfim até a Pedro II, sentindo o perfume de suas rosas, prometo voltar no próximo Finados , sem ousar olhar para trás. Sobre estes anúncios. Quiser conhecer o Blog Fernando Pawwlow – Cadernos clique aqui
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Ainda a seriedade que o assunto exige. Assista à Entrevista de Carlos Bacellar, Professor e historiador da Universidade de S. Paulo, no Programa de Ronnie Von. Logo no início, Bacellar observa que antigamente a morte era muito comentada e o sexo, grande tabu. Bem, isso é apenas um dos diversos aspectos interessante que Bacellar aponta. Vale muito a pena assistir. Clique aqui